Marcelo Semer
De São Paulo
De São Paulo
Serra e Dilma na reta final da campanha (Fotos: Terra)
Segundo os indicativos das pesquisas, não é possível saber com segurança, antecipadamente, quem ganhará as eleições.
Independente de quem vença, no entanto, uma coisa é certa: todos perderam.
A campanha eleitoral nos revelou várias surpresas, mas nenhuma delas agradável.
O panorama da eleição, visto de seu início, apresentava uma perspectiva de amadurecimento democrático.
Nenhum dos principais candidatos à presidência tinha vínculos com o regime militar. Um quarto de século depois da redemocratização e os políticos egressos da ditadura não mostram forças para disputar a presidência.
O que parecia ser vitória da democracia revelou-se uma farsa.
A condição de oponente à ditadura de Dilma Rousseff foi empregada à exaustão como forma de sua desmoralização pelos adversários.
Fichas policiais apócrifas foram distribuídas pela Internet, atribuindo à candidata ações das mais diversas e irreais, moldando falsamente os adjetivos de terrorista e assassina que se fariam circular pelo submundo da eleição.
2010 poderia ter sido o ano de resgate da verdade sobre o regime militar e as torturas praticadas em nome do Estado. Longe disso.
O STF pôs uma pedra sobre os fatos no julgamento da anistia, supostamente com o pretexto da cordialidade do povo e a necessidade de esquecimento do passado em nome da paz social. Mas impunes os agentes da ditadura, iniciou-se a desconstrução daqueles que lutaram pela liberdade.
A campanha eleitoral atingiu picos elevados de despolitização, em grande parte porque o alto prestígio do governo Lula desestimulou os candidatos de oposição a criticá-lo abertamente. Serra chegou a introduzi-lo em sua própria propaganda de TV.
Se a eleição teve um início morno, seu final tem se mostrado exageradamente caliente, mas sem perder a despolitização jamais. A campanha tratou de submergir na baixaria, na propagação de preconceitos e no estímulo ao ódio.
Uma visita tétrica ao passado que pretendíamos esquecer.
Em 1985, Fernando Henrique Cardoso era candidato a prefeito de São Paulo pelo PMDB, quando foi surpreendido no debate por uma pergunta do mediador Boris Casoy, indagando se acreditava em Deus. Hesitou na resposta e reclamou com o jornalista que lhe prometera não fazer essa pergunta de caráter íntimo. Candidatos nanicos a serviço do adversário lhe aplicaram a pecha de comunista e ateu e o sociólogo perdeu a eleição para um decadente Jânio Quadros.
Na disputa presidencial de 1989, o até então desconhecido Fernando Collor contou com a simpatia e algo mais da TV Globo, ensinando a todos o quanto a ajuda dos meios de comunicação podia desequilibrar uma eleição.
Mesmo assim, no segundo turno, seu adversário havia encostado nas pesquisas. A partir de então, Lula foi taxado de comunista e confiscador. Era representado como diabo vermelho nos cordéis nordestinos e se dizia que fecharia igrejas pelo país afora.
E se não bastasse o boca-a-boca maldito, uma ex-companheira foi contratada pelo adversário para expor intimidades no horário eleitoral.
Passadas mais de duas décadas, os fantasmas de Jânio e Collor voltam a assombrar marqueteiros em desespero.
Mentiras são disparadas por e-mails e as correntes do mal atingem em chofre o eleitorado classe média, onde estaria a maior parte dos indecisos.
Dilma foi a opção preferencial das pirâmides da infâmia: de matadora de crianças ao satanismo, passando por aleivosias sexuais, a candidata foi acusada de quase tudo.
No final, como bumerangue, partiu das redes sociais a revelação de um suposto aborto praticado pela esposa de Serra, que em campanha teria criticado Dilma por apoiar a 'matança de criancinhas'.
Mas se a tecla do vale-tudo, usada como nunca nestas eleições, não fosse suficiente para degradá-las, ainda restava um último pesar.
Esvaziada das comparações ideológicas entre os candidatos, por opção ou incompetência, a campanha do segundo turno foi inteiramente tomada pela pauta religiosa. Proporcionou-se um atraso secular, que manchará a biografia de quem a introduziu como última cartada.
Mais de um século depois da separação de Estado e Igreja, a religião passou a ser a falsa questão central da eleição, desde que as pesquisas constataram que o tema sangrara Dilma às vésperas do primeiro turno.
Os candidatos comungaram, fizeram testemunhos de fé nas igrejas, beijaram terços e batinas e encheram propagandas de televisão com referências aos valores dignos da família cristã. Ao final, estavam comprometidos em manter o aborto como um caso de polícia.
As milhares e milhares de mulheres que morrem anualmente no país pela realização de procedimentos clandestinos, por falta de auxílio do poder público, que esperem mais quatro anos por outra oportunidade.
Vidas continuarão a ser desperdiçadas banalmente, porque um candidato achou que podia ganhar com esses votos e uma candidata receou perder por causa deles.
Recordações desonrosas da ditadura, invertendo os papéis da história. Fantasmas da infâmia elevando o submundo à condição de estratégia eleitoral. O Estado laico em risco, pela busca desesperada de um punhado de votos crentes.
Ganhe quem ganhar, esta terá sido, sem exageros, a pior eleição dos últimos tempos.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Fale com Marcelo Semer: marcelo_semer@terra.com.br
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