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O badaladíssimo e quilométrico artigo de Fernando Henrique Cardoso na Folha de São Paulo é uma obra aberta: está sujeito a diversas interpretações e, aqui, apresento a minha.
Ao introduzir, nessa espécie de “cartilha de ação do PSDB” , a ideia de que os tucanos devem retirar o foco no “povão” e concentrar-se nos emergentes, na “nova classe média”, FHC cometeu um ato falho e, para justificar o que seria uma gafe política, alegou que as pessoas não haviam entendido o que pretendera dizer, convidando-as à releitura do seu texto. Mas, quando são muitas as pessoas que tiveram esse “falso entendimento” – e entre elas diversos correligionários do ex-presidente -, é mais adequado concluir que ele efetivamente disse o que as pessoas entenderam. Se era ou não coisa para dizer, isso é outra história. E eu defendo a tese do ato falho...
No meu entender, FHC não inovou em nada, no artigo, o seu ideário político ou, por extensão metonímica, o dos tucanos. O PSDB não é mesmo o partido do “povão” e seria ridículo que pretendesse deter essa posição, tradicionalmente assumida por outras agremiações políticas, entre elas o PT.
É por isso , aliás – por esses posicionamentos antagônicos em relação às camadas populares -, que o governo de Fernando Henrique não fez o que o de Lula fez: retirar milhões de brasileiros da pobreza, esses milhões que, guindados agora à classe média, os tucanos querem “apadrinhar” (ou será “abocanhar”?).
Interessante o raciocínio do sociólogo, que um leigo como eu poderia assim resumir: o PT cuida dos mais pobres, dos miseráveis e desfavorecidos, com políticas sociais de inclusão. E uma vez inseridos dignamente na sociedade, aí entra o PSDB para “adotá-los”. Até que faz sentido, porque os tucanos são mesmo mais chegados a uma visão elitista e seletiva das pessoas no mundo, mais afeitos a defender os interesses dos que já possuem, dos privilegiados que pretendem possuir cada vez mais.
A mim não surprende essa tese. Desde o início, tenho colocado aqui minha posição sobre compromissos ideológicos e minha convicção de que é um engodo o fim da dicotomia esquerda x direita. Mudam-se os contextos, alteram-se os cenários, mas sempre haverá quem se posicione ao lado dos mais fracos e os que pretendam a manutenção dos privilégios dos mais fortes. E, antes que me rotulem, mais uma vez declaro não ser filiado ao PT ou a qualquer partido e, pelo contrário, lamento que essa vocação histórica pelas causas populares dos petistas não vá mais fundo e ainda faça concessões pouco aceitáveis a banqueiros e outros que se “endinheiram” à custa da exploração alheia. Estou apenas reafirmando que há, sim, os que se preocupam mais com o “povão”, os que dedicam políticas sociais a esse segmento (e é com um Estado atuante que se pode fazer isso), e os que se preocupam com interesses mais “específicos” (e que elegem o deus Mercado para a concretização de seus desejos particulares).
É fácil ver isso em todos os momentos em nossa política, mas não apenas nela. É fácil ver isso no cotidiano, na forma como pessoas comuns, como eu e você, vemos o mundo, as outras pessoas e suas necessidades. Algumas frases, algumas posturas, são esclarecedoras nesse sentido. Sem a menor preocupação com o valor “científico” desta afirmação nada ortodoxa e dela depurado um possível viés maniqueísta , penso que esnobação, arrogância, egoísmo, preconceito, defesa exagerada do primado do individual e coisas do gênero são atitudes “de direita”, enquanto solidariedade, convivência igualitária, respeito à alteridade, preocupação social e valorização do coletivo, por exemplo, são posicionamentos“de esquerda”.
A esquerda e a direita sobrevivem, mesmo com a queda do Muro de Berlin, mesmo com a morte do socialismo, mesmo com a apregoada caducidade do marxismo. Sobreviverão, enquanto as desigualdades sobreviverem...
Não é, pois, difícil reconhecer quem é de esquerda ou de direita, ainda que estes últimos não se admitam ou se reconheçam assim. Aliás, cá para nós, o primeiro passo para reconhecer um direitista é quando ele nega a existência dessa dicotomia, uma forma, talvez, de pacificar a sua consciência... Fernando Henrique Cardoso, em seu ato falho, quase se assumiu...
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