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domingo, 10 de abril de 2011

A doença de todos nós


Não queria escrever sobre isso. Pelo menos não o queria fazer agora, quando minhas palavras correm o risco de se confundir com o macabro e oportunista show midiático que, à exaustão, inundou os olhos e ouvidos dos brasileiros e massacrou os nossos corações,em uma quinta-feira que marcará para sempre um dos episódios mais tristes da história recente do país.


Mas sou professor, vivo nas salas de aula desde os anos 60, sou pai e avô, julgo-me um cidadão consciente, e penso que, em qualquer dessas condições, o massacre de Realengo me diz respeito diretamente.

Muitos adjetivos foram aplicados ao jovem que, premeditadamente, a sangue frio, protagonizou o massacre, baleando com requintes de perversidade crianças inocentes e indefesas e, no final, dando fim à própria vida. Autoridades referiram-se a ele como “animal” – o Presidente do Senado caracterizou o ato como “terrorista” - e, a julgar pelas reações populares, é esse o sentimento geral a respeito da figura do assassino.

Pessoalmente, a despeito da repugnância que me move, não quero adjetivá-lo, nem poderia fazê-lo , sob pena de estar levianamente falando sobre o que desconheço. Muito difícil entender logicamente e aplicar um vocabulário lógico a um comportamento que escapa à razão e cujos fundamentos estão lá no abismo ainda pouco conhecido da mente mal formada, ou, quem sabe, deformada por outras mentes. Sinto-me, sim , profundamente desconcertado, entristecido e enlutado, ao perceber como a morte estúpida de tantas crianças, abortando-lhes o futuro, deixa exposta a nossa impotência.

Em todas as manifestações oficiais, menciona-se o repúdio à violência e eu fico aqui pensando na obviedade vazia dessas palavras de indignação. Eu fico aqui pensando que tipo de violência devemos repudiar como causadora de uma tragédia como essa. Será a que se manifestou em um tiroteio cruel promovido por uma pessoa vulnerável, ou aquela muito mais ampla que tem a ver com uma sociedade planetariamente adoentada?

Professor, pai ou cidadão, identifico, desde os âmbitos restritos das escolas ou dos lares até o espaço universal da sociedade, um movimento insidioso e nefasto que, levando as pessoas ao isolamento egocêntrico, vai-nos retirando, em doses crescentes, os humanitários valores da comunhão, da solidariedade, da irmandade saudável, para mergulhar os homens no oceano da solidão perversa, amiga íntima dos comportamentos mórbidos, das doenças do espírito, da desumanização

Depoimentos esparsos sobre a personalidade do criminoso e os termos da carta por ele deixada permitem que localizemos marcas do desequilíbrio que acabaram por provocar a catástrofe. Mas, aqui e ali, vamos percebendo, nas declarações colhidas, um tristíssimo ser perdido entre os seres, acumpliciado aos próprios pensamentos da alienação, incapaz de reconhecer o mundo em que vive, talvez porque o mundo ao seu redor tenha sido incapaz de reconhecê-lo.

Segundo se diz, o atirador era um homem sem amigos, com aversão ao social, cuja única interação se dava com a máquina fria, o computador, cujo mundo era, literalmente, virtual.

Acho que o episódio nos convida , sim, a muitas reflexões. Uma delas: para onde caminhamos neste culto ao próprio umbigo, nesta afirmação desequilibrada do indivíduo diante do coletivo, neste abandono do outro, neste desrespeito à alteridade? Essa sociedade tecnológica que nos envolve e atrai será a nossa liberdade ou nosso túmulo ? Outra: que papel vem desempenhando a família contemporánea, que se transformou em um conjunto de indivíduos que cada vez menos interagem, cada um deles mergulhado nas suas próprias elucubrações e aspirações?

Os termos da carta do jovem assassino de 23 anos são desconexos, mas trágicos, assustadores. São marcas de uma patologia grave, delirante, provavelmente esquisofrênica. Repletos de passagens de natureza mística, religiosa, traduzem posturas maniqueístas, que caracterizam comportamento fundamentalista. O fundamentalismo, aliás – seja do ocidente belicista ou do oriente messiânico – é outra marca pérfida do mundo em que vivemos, e sobre a qual também deveríamos refletir neste momento.

Eu não queria escrever sobre isso. Gostaria muito de estar promovendo o pensamento sobre um mundo de progresso, sobre a felicidade espalhada por aí a fora, sobre a evolução civilizatória como tônica da saga do ser humano. Infelizmente, porém, o assunto é esse.

Fala-se em voltar a discutir o desarmamento ou no fortalecimento de medidas de segurança ou de vigilância. Quanto a mim, absolutamente incapaz de oferecer soluções fáceis e demagógicas tendentes a evitar fatos dessa espécie , restam-me, apenas, palavras de indefinível tristeza e de desabafo. Que não trazem as crianças de volta.



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