Publicado em 03/07/2011
As coisas do passado
E eis que, de repente, me pego pensando nas coisas do passado, estimulado pelo último filme de Woody Allen, “Meia noite em Paris”, um moderno conto de fadas, no qual , com excepcional leveza, somos conduzidos, através do ator principal (a própria encarnação de Allen?) a um mundo que é sempre o pano de fundo das almas românticas, pródigas na idealização do que passou.
Em uma (como sempre) excelente crônica - “Velhos Tempos” -, Martha Medeiros, sensibilizada pelo filme, cunhou a expressão “saudade reciclável”, para enfatizar o fato de que qualquer presente é sempre um passado amanhã e, como tal, possivelmente merecedor de um saudoso olhar poético.
De minha parte, penso que é injustificável a negação sistemática do tempo que vivemos para afirmar, em troca maniqueísta, as absolutas delícias de um passado que, é claro, nunca terá sido integralmente delicioso. Por outro lado, também julgo impossível não conceder créditos à sedução do passado, seja ele o que vivenciamos como participantes diretos ou o que nos chega através da atração da História.
Do passado, colhem-se, para o presente, os bons e os maus momentos. E aprende-se, para o hoje, com o ontem. Tendo feito parte da geração dos anos 60, a que vivenciou 1968, “o ano que não terminou”, vêem-me a cabeça os anos de chumbo da ditadura, e, aí, seria mesmo muita “piração” tratar com generosidade um tempo marcado por torturas e censuras, gorilas e outros animais do gênero. Mas quando vejo no jornal que, aqui no Rio, o CCBB vai promover alguns espetáculos de apresentação das composições censuradas pelo regime militar - coisa que vai desde o “Almirante Negro”, de João Bosco, até as músicas de Odair José – percebo como iniciativas assim constituem uma forma de manter vivo o passado, mesmo infausto e perverso, como um recado para o presente.
Precisamos e precisaremos sempre recolher do passado o que pode fazer positivo o nosso presente, em uma espécie de antropofagia temporal que nos leve a devorar do ontem o alimento cultural que nos permita ficar mais fortes – e felizes – no hoje.
Em uma outra crônica (“HD”), que, de alguma forma, tem a ver com essa temática, Caetano Veloso menciona a si próprio como um “velhinho transviado” que estranha a resistência de alguns contemporâneos seus para ler, ver e ouvir os novos lançamentos. Confesso que, no âmbito musical, sou um desses a que Caetano se refere. Passadista confesso, como diria Mário de Andrade...
Do tempo que passou (mas não passou...), leio a notícia de que a esplêndida irmã de Caetano, Maria Bethania, está lançando duas caixas com CDs da sua fase áurea. E aqui mesmo no DR li, na coluna do Luiz Antônio Mello, comentários sobre os 67 anos do Chico e a disponibilidade, em site específico, de todo o seu acervo musical. Nessa matéria, confesso abertamente o meu sentimento nada imparcial: tomando esses dois artistas como exemplo, não vejo como comparar isso que se faz hoje no Brasil –música em geral barulhenta e vulgar, superficial e descomprometida - com a espetacular criação musical de então, aquela que cantava o amor nos versos da bossa nova, ou a que conclamava à luta contra a opressão, ou a que instaurou entre nós a subversão tropicalista.
Claro, há uma grande tendência a que, no futuro, se venham a reverenciar muitos aspectos de hoje como dignos da eterna nostalgia romântica. Talvez este venha mesmo a a ser considerado um dos momentos de ouro da Humanidade, no qual a ciência e a tecnologia, instalando-se como deusas, terão trazido o conforto, a comodidade e a dignidade para os homens. Talvez...
Eu, porém, lembrando novamente Mário de Andrade em seu “Prefácio Interessantíssimo”, não consigo libertar-me das “teorias-avós” que bebi em um tempo que ficou para trás – feliz ou inglório, sublime ou nefasto . Porque , no fundo no fundo, é um caso de escolhas, que têm a ver com uma visão do mundo. Muitas das minhas olham para trás. Eu prefiro morar em Botafogo – suas ruas tradicionais, seus bares de sempre, suas muitas casas velhas - a ir para a Barra, que aponta para o futuro com sua arquitetura e suas comodidades modernas. Prefiro a privacidade dos diários de antigamente ao escancaramento egocêntrico dos twitters e orkuts de hoje. Seguramente, prefiro a Notre Dame de Paris ao mais sofisticado prédio de Dubai. Prefiro a visão do social, que anda perdida no passado, ao individualismo mercadológico do presente. Mas são escolhas, apenas escolhas. Alguém que me lê agora provavelmente escolheria exatamente o contrário, enxergando virtudes onde vejo defeitos, e vice-versa.
A esta altura, é provável que algum olhar mais crítico esteja tentado a rotular de jurássica essa postura, enquadrando-a na ambiência daqueles poetas do século XIX que, rejeitando o presente, queriam até morrer para libertar-se. Nada disso. Tenho outras escolhas em que o que vale é o hoje...e a vida. Nesse caso, e ainda que enxergue as benesses das atuais conquistas tecnológicas e científicas, essas escolhas não recaem sobre as máquinas e comandos digitais que me cercam , as redes, os acessos e botões onipresentes, mas nos seres que me povoam a vida, meus filhos, netos, minha companheira, meus amigos. Porque, caindo na real, o que realmente existe e importa é o presente e é nele que temos de buscar ser felizes o quanto possamos. Só que – por que não? – com contribuições do passado, que incorpora os bons ensinamentos, as belas recordações, as reminiscências....
Aliás, poética e romanticamente, pode até caber, nessa receita existencial, o que Raul Pompeia chamou de “saudade hipócrita”, porque injustificada, idealizada. Creio que Fernando Pessoa externou exatamente isso, esse direito onírico de vermos o passado como ele não foi, de fantasiarmos o que passou, em versos que, quando jovem, demorei a compreender : “E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora”...
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